Contos

“Certa manhã um casal estava no Eixão. Esse é o nome dado à via que vai do final da Asa Norte, passa pelo centro, terminando no final da Asa Sul. Nos dois extremos ela se liga com outros locais, inclusive com cidades satélites. Hoje, início do século XXI, elas são bairros da capital.

Havia árvores e flores nos dois lados.

Árvores frutíferas, principalmente manga e amora, saboreadas por quem quiser pegá-las. Muitas e muitas. Aquela fartura que a Natureza dá sem pensar em estoque, em posse. Elas abundam para tentar saciar a fome desse povo. Depois cessam. Estão se preparando para a próxima temporada. Na mata virgem dos instrumentos do homem, o revezamento é perfeito e harmônico.

Árvores do cerrado. Retorcidas. Quem chega à cidade, inicialmente não as aprecia por serem muito diferentes daquelas que as paisagens europeias nos acostumaram. Porém aos poucos o imigrante vai aprendendo a admirá-las. Algumas vezes se vislumbra uma tristeza nelas. Um sofrimento que parece que vem do fundo de seu íntimo. Entretanto isso é uma fortaleza enorme que a seca de meses não as deixa abater. Uma perseverança de continuar a lutar para ficar naquele mesmo lugar, mesmo com todas as dificuldades que a própria natureza e a vida moderna lhe impõem. Suas raízes heroicamente vão pegar sustento nas profundezas do solo. Elas continuam ali. Sem fazer questão de serem notadas, muitas vezes maltratadas, mas sempre fortes e altivas. Parecem com a maioria das pessoas: quase anônimas.

E as mais belas: as árvores e arbustos de flores. Quantas flores. Como são lindas e coloridas! Algumas têm muita cor e muita exuberância. Outras são miudinhas e discretas. Durante o ano inteiro se revezam para alegrar as nossas vistas. Todas são encantadoras.

Porém o ipê se destaca na época de seca. Quando as cores das outras se escasseiam, ele rompe com suas flores. Elas têm um colorido tão forte e tão intenso que se impõem maravilhosamente nos canteiros. Chamam atenção num escândalo de beleza. Não duram muito, mas suas cores, que são várias, marcam todos aqueles que passam pelo Eixão.

E o sol. Quanta luminosidade! Ela é tão intensa que abrange tudo que a nossa vista consegue olhar. Parece que vai além da nossa percepção, penetrando no fundo de nossas almas.

— Quem pode ficar triste, sem sentir o divino toque, debaixo do sol do Eixão?

— E quem pode deixar de agradecer a Deus por tanta maravilha?”

Extraído do livro “O Ministério do absurdo” da escritora Clotilde Chaparro

DUZINDA

O RIO TIETÊ

Pai e filha conversavam sobre o rio Tietê, quando a mulher passou e falou:

– Tietê… um rio bobo.

– Porque?

– Ela aprendeu na escola que ele nasce na Serra do Mar, e em vez de descer a serra, dá uma volta enorme.

O pai continuou:

– Pois eu o vejo bem diferente. É um rio lutador, determinado, com garra. – Vencedor!

A mulher já não o escutava, porém a filha sim.

– Como assim?

– O rio Tietê nasce na Serra do Mar, a alguns quilômetros do oceano, para onde todos os rios correm. O normal seriadescer a serra, como fazem todos os bicos d’água, as nascentes dali. Acontece que havia uma pedra grande ali. Ele tentou dar a volta, entretanto não conseguiu fazer o que os seus pares faziam. Ele não podia e não queria virar uma poça de água.

– O que ele fez?

– Virou-se para o planalto, tornando-se um riozinho maior. Ia recebendo todos os córregos, riachos e corredeiras com entusiasmo. Aos poucos foi se tornando um rio mesmo.

– Como a gente o conhece aqui?

– É. Chegou à nossa cidade, e atravessou o Estado de São Paulo, tornando-se muito importante. Depois foi se lançar no rio Paraná. Suas águas andaram por vários estados brasileiros, fazendo parte da bacia do Prata, banhando até países estrangeiros. Hoje é um rio conhecido, de importância política e econômica, famoso e internacional.

– Nunca pensei nele assim.

– Se não fosse essa pedra, ele seria um córrego. No máximo um riacho que ninguém ia conhecer. Os outros que nascem ali, descem para o mar. Se não fosse sua força, ele seria uma poça d’água. Essa iria evaporar, ou, pior, ficar cheia de bichos ou mosquitos. Assim, não, foi à luta, contornou todas as pedras existentes, e tornou-se o maravilhoso rio Tietê.

A filha olhava para ele atentamente.

– Bonita história, pai.

– É, Iolanda, na sua vida apareceu uma pedra, não se deixe virar uma poça d’água. Lute e vença, como o rio Tietê.

Ela meditou muito. No outro dia, levantou-se e fez uma pinta no rosto.

Infelizmente, atualmente o Tietê é poluído e malcheiroso, pelo uso errado que os homens fazem da natureza. Espera-se que, quando você ler esta parte, os nossos políticos já o tenham despoluído totalmente… e este parágrafo possa ser retirado. (Conto adaptado de trecho do romance Duzinda, de autoria da escritora Clotilde Chaparro Rocha).

O CASAMENTO DA MENINA

A primeira metade do século passado, um pai teve sua filha fugida com um homem

– Não posso arriscar, deixando a honra da família novamente se enlamear.

Com esses pensamentos, Seu Manoel resolveu casar a filha mais nova logo, quando ela fez catorze anos. E arrumou um patrício seu, o Joaquim, de quarenta e sete. Trinta e três anos de diferença.

Izilda ainda não tinha menstruado, e era uma menina em tudo.

Então os dois – o pai e o noivo – entraram num acordo:

– A lua de mel fica adiada até que o corpo dela esteja com as “regras”.

O peito mal começava a despontar.

Desnecessário dizer que o tal português era um homem rico.

A cerimônia foi simples, porém de vestido branco de noiva e bolo de casamento. Na igreja e no civil. Como mandavam todos os costumes da época.

A menina estava alegrinha. Só de estar numa festa já bastava, ainda mais ela sendo o centro de tudo. Todos lhe dando atenção, fato este que não era comum. Até o pai. Ria descontraída e até pulava. Quis até pegar a boneca antiga para também participar.

Foi quando a mãe lhe censurou :

– Você agora vai ser uma esposa. Não pode mais brincar de boneca. Que menina sem juízo! E pare de pular também, que não convém a uma senhora!

Terminada a festa, os nubentes foram para a casa do noivo. Ele havia montado uma rica casa para ela. Ele próprio escolheu tudo.

Ela levou a boneca escondida.

A menstruação demorou uns meses. Enquanto isso, ele se refastelou no corpinho impúbere dela. Bolinava e fazia estrepolias sexuais. Ainda se gabava a um amigo:

– A virgindade dela eu respeito, mas sou um homem viril. Tenho o direito de me satisfazer, de gozar o sexo.

– Lógico. Homem que fica sem sexo, fica louco.

Apesar do absurdo da afirmação, era o esperado. Inclusive pelo pai dela. E foi o que aconteceu.

No início, ela se punha a chorar, fugindo dele. Os hormônios não tinham chegado para lhe darem desejo. Entretanto, como ele, excitado, ficava muito bravo, ela começou a se sujeitar aos abusos sexuais.

Absurdamente o pai estava tranqüilo com a vida conjugal da filha.

– Agora estou sossegado com a honra da família.

Apesar de muito nova, Izildinha, aos poucos, soube se impor como mulher. Floresceu em sua juventude, enquanto o marido decaía.

(Conto adaptado de trecho do romance Duzinda, de autoria de Clotilde Chaparro Rocha)

PESADELOS, SONHOS E CONTOS

Clique aqui, para ler os contos do livro na íntegra em português: http://pt.scribd.com/doc/63653295/Pesadelos-Sonhos-e-Contos

Click here to read the tales of this book in English: http://pt.scribd.com/doc/92381177/Nightmares-Dreams-and-Tales

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